quarta-feira, 25 de março de 2009

impunidade em debate

Regras, fantasmas e instituições

A recente decisão do STF no Habeas Corpus 84.078 (clique aqui), que fez valer o mandamento constitucional de que ninguém pode começar a cumprir pena antes de a decisão condenatória tornar-se irrecorrível, fez surgir debates calorosos. Alguns argumentam que o STF nada mais fez do que garantir a eficácia normativa da Constituição (clique aqui), que clara e expressamente proíbe o cumprimento antecipado da pena; já outros fizeram direta associação entre o respeito desse direito e os obstáculos por ele criados à realização da justiça, redundando em impunidade. Nesse fogo cruzado, aflora em muitos a percepção de que as instituições encarregadas de nos proteger se atrapalham em meio a suas regras e resolvem suas próprias aporias à custa da nossa segurança – nós, que não somos juízes, não fomos constituintes e muito menos somos acusados. Nessa luta entre o sistema de justiça e os princípios por ele mesmo criados, a visão prevalecente é a de que a impunidade venceu e perdemos todos nós. Também nesse conflito seríamos, notem bem a ironia, vítimas de balas perdidas de uma disputa alheia.

Uma vez que impunidade é, antes de uma assombração coletiva, um fenômeno empírico, pode ser útil analisar o que representa a decisão do STF no mundo em que vivemos. Tomemos o caso das justiças estaduais, que são competentes para julgar a ampla maioria dos crimes que nos amedrontam (roubos, homicídios, tráfico de entorpecentes etc.): segundo o último relatório do Conselho Nacional de Justiça (A justiça em números, 2008), as justiças estaduais recebem por ano aproximadamente 3.000.000 de casos novos, entre cíveis e criminais, desconsiderados os juizados especiais. Entre esses, a taxa de recorribilidade aos tribunais é de aproximadamente 13%: pelo caminho ficam os acordos, desistências, decisões não recorridas e outras tantas coisas. Dos casos que chegam à segunda instância, apenas 24% apresentam recursos às instâncias superiores. Nas justiças estaduais, é sobre essa porcentagem reduzida que recaem os efeitos da nova decisão do STF. Ajustando a figura inicial, tem-se que, para cada 3.000.000 de casos que entram anualmente nas justiças estaduais, pouco mais de 3% chegam às instâncias superiores.

Há, entretanto, dois funis adicionais a esse número: ele abrange, em primeiro lugar, tanto processos cíveis (que nada tem a ver com a decisão do STF, portanto) quanto criminais; e, mais ainda, compreende muitos recursos visando às instâncias superiores, dentre os quais boa parte não é aceita por falta de condições técnicas de admissibilidade. Logo, podemos assumir que a decisão do STF potencialmente afetará alguma coisa entre 1% e 2% do total de casos penais iniciados nas justiças estaduais.

Por fim, é preciso considerar que, mesmo em meio a esse número proporcionalmente pequeno, é sim plenamente possível que se dê a prisão antes do trânsito em julgado da decisão, nos casos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal (clique aqui) – que, aliás, são os mesmos que permitem o encarceramento no correr das ações em primeira e segunda instância. A diferença está, apenas, em seus fundamentos: o réu não poderá ser preso a título de cumprimento da pena pela qual ainda não foi definitivamente condenado; mas poderá sê-lo por representar perigo à ordem pública, ou para evitar uma fuga iminente que prejudique a execução da sentença condenatória. Ou seja: não estamos menos vulneráveis aos 2% de réus das instâncias superiores do que o estamos em relação aos outros 98% das instâncias inferiores.

Talvez haja, portanto, certo exagero na percepção compreensível, porém infundada, de que nossa sociedade tornou-se menos segura e mais impune desde quando a dita decisão foi proferida. O raciocínio oposto talvez seja mais apropriado: pagaremos um preço baixo pela reafirmação do valor simbólico, mas de efeitos sensíveis, de que as regras constitucionais devem ser respeitadas por todos, sejam cidadãos de empregos modestos, sejam os ocupantes de cargos públicos de destaque do sistema de justiça penal. Historicamente, as sociedades que escolheram fortalecer suas instituições dificilmente saíram perdendo, ainda que esse processo de fortalecimento possa ter o desconfortável custo de termos de enfrentar nossas próprias assombrações.

Rafael Mafei Rabelo Queiroz* Professor da Universidade São Judas Tadeu e da Direito GV

Do Migalhas

 

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